Simulado Empresa de Pesquisa Energética - EPE | Analista de Gestão Corporativa - Administração Geral | 2019 pre-edital | Questão 85

Língua Portuguesa / Emprego do sinal indicativo de crase


Dê uma chance ao ser humano A vizinha tocou a campainha e, quando abri a
porta, surpreso com a visita inesperada, ela entrou,
me abraçou forte e falou devagar, olhando fundo
nos meus olhos: “Você tem sido um vizinho muito
compreensivo, e eu ando muito relapsa na criação dos
meus cachorros. Isso vai mudar!” Desde então, uma
série de procedimentos na casa em frente à minha
acabou com um pesadelo que me atormentou por
mais de um ano. Sei que todo mundo tem um caso
com o cachorro do vizinho para contar, mas, com final
feliz assim, francamente, duvido. A história que agora
passo a narrar do início explica em grande parte por
que ainda acredito no ser humano – ô, raça!
Meus vizinhos, pelo menos assim os vejo da
janela lá do cafofo, não são pessoas comuns. Falo de
gente especial, um casal de artistas, ele músico, ela
bailarina, dupla de movimentos suaves e silenciosos,
olhar maduro, fuso horário próprio e descompromisso
amplo, geral e irrestrito com a pressa na execução
das tarefas domésticas que assumem sem ajuda
de ninguém. [...] A paz mora do outro lado da rua
e, confesso, morro de inveja quando me mato de
trabalhar noite adentro ali adiante. Queria ser como
eles.
Quando o primeiro pastor alemão chegou ainda
moleque para morar com meus adoráveis vizinhos,
a casa de pedra onde eles moravam viveu dias de
alegria contagiante. O bicho era uma gracinha, foi
crescendo, começou a latir, mas nada que quebrasse
a harmonia do lugar. [...] Quando, logo depois do
primeiro acasalamento, o segundo pastor alemão fez
crescer a família, cada paralelepípedo da minha rua
pressentiu o que estava para acontecer. Ou não! De
qualquer forma, eu achava que, se porventura aquilo
virasse o inferno que se anunciava, outro vizinho
decerto perderia a paciência antes de mim, que,
afinal, virei tiete do jeito de viver que espiava pela
janela do escritório de casa. Eu, ir lá reclamar, nunca!
Não sei se os outros vizinhos decidiram em
assembleia que esperariam a todo custo por uma
reação minha, mas, para encurtar a história, o fato
é que um ano e tanto depois da chegada do primeiro
pastor alemão àquela casa, eu tive um ataque,
enlouqueci, surtei. Imagine o mico: vinha chegando
da rua com meus filhos – gêmeos de 10 anos –,
chovia baldes, eu não conseguia achar as chaves e
os bichos gritavam como se fôssemos assaltantes de
banco. [...]
– Cala a booooocaaa! – gritei para ser ouvido
em todo o bairro. Os cachorros emudeceram por 10
segundos. Fez-se um silêncio profundo na Gávea.
Os garotos me olhavam como se estivessem vendo
alguém assim, inteiramente fora de si, pela primeira
vez na vida. Eu mesmo não me reconhecia, mas, à
primeira rosnada que se seguiu, resolvi ir em frente,
impossível recuar: “Cala a boooooocaaa! Cala a
boooooocaaa!” Silêncio total. Os meninos estavam
agora admirados: acho que jamais tinham visto
aqueles bichos de boca fechada.
[...] Entrei rápido com as crianças entre arrasado
e aliviado. Achei na hora que devia conversar com
meus filhos, que melhor ainda seria escrever com
eles uma carta educada e sincera explicando a
situação aos nossos vizinhos preferidos.
Comecei pedindo desculpas pela explosão
daquela noite, mas pedia licença para contar
o drama que se vivia do lado de cá da rua. Havia
muito tempo não entrava nem saía de casa sem que
os cães dessem alarme de minha presença na rua.
Tinha vivido uma época de separações, morte de
gente muito querida, além de momentos de intensa
felicidade, sempre com aqueles bichos latindo sem
parar. [...] – escrevi algo assim, mais resignado que
irritado, o arquivo original sumiu do computador.
Mas chegou aonde devia ou a vizinha não teria
me dado aquele abraço comovido na noite em que
abri a porta, surpreso com ela se anunciando no
interfone, depois de meu chilique diante de casa. [...]
Desde então – há coisa de um mês, portanto –,
meus vizinhos têm feito o possível para controlar o
ímpeto de seus bichos, que já não me vigiam dia
e noite, arrumaram para eles coisa decerto mais
interessante a fazer no quintal. [...] Às vezes não
acredito que isso esteja realmente acontecendo neste
mundo cão em que vivemos. Se não estou vendo
coisas – o que também ocorre com certa frequência –,
o ser humano talvez ainda tenha alguma chance de
dar certo. Pense nisso! VASQUES, Tutty. Dê uma chance ao ser humano. In: SANTOS,
Joaquim Ferreira. As Cem Melhores Crônicas Brasileiras.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 311-313. Adaptado.

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Fonte: TéCNICO EM ARQUIVO / BNDES / 2011 / CESGRANRIO