Simulado Polícia Civil de São Paulo - PCSP | Escrivão de Polícia | 2020 | Questão 383

Língua Portuguesa / Vícios e figuras de linguagem; Figuras de sintaxe


Teria eu meus seis, meus sete anos. Perto da gente, mo-
rava o “casal feliz”. Ponho as aspas porque o fato merece.
Vamos que eu pergunte, ao leitor, de supetão: – “Você co-
nhece muitos ‘casais felizes’?” Aí está uma pergunta trági-
ca. Muitos afirmam: – “A coabitação impede a felicidade” etc.
etc. Não serei tão radical. Nem podemos exigir que marido e
mulher morem um no Leblon e outro para lá da praça Saenz
Peña. Seja como for, uma coisa parece certa: – o “casal feliz”
constitui uma raridade.
Normalmente, marido e mulher têm uma relação de ares-
tas e não de afinidades. Tantas vezes a vida conjugal é tecida
de equívocos, de irritações, ressentimentos, dúvidas, berros
etc. etc. Mas o “casal feliz” de Aldeia Campista conseguira,
graças a Deus, eliminar todas as incompatibilidades. Era a
mais doce convivência da rua, do bairro, talvez da cidade.
Quando passavam, de braços, pela calçada, havia o sussurro
espavorido: – “Olha o casal feliz!”. Da minha janela, eu os via
como dois monstros.
Estavam casados há quinze anos e não havia, na história
desse amor, a lembrança de um grito, de uma impaciência,
de uma indelicadeza. Até que chegou um dia de Carnaval
e, justamente, a terça-feira gorda. O marido saiu para visitar
uma tia doente, não sei onde. A mulher veio trazê-lo até o
portão. Beijaram-se como se ele estivesse partindo para a
guerra. E, no penúltimo beijo, diz a santa senhora: – “Meu
filho, vem cedo, que eu quero ver os blocos”. Ele fez que sim.
E ainda se beijaram diante da vizinhança invejosa e frustra-
da. Depois, ela esperou que ele dobrasse a esquina.
E as horas foram passando. A partir das seis da tarde
ficou a esposa no portão. Sete, oito, nove da noite. Os reló-
gios não paravam. Dez da noite, onze. E, por fim, o marido
chegou. Onze.
O “casal feliz” foi parar no distrito.
Pois bem, contei o episódio para mostrar como o “irre-
levante” influi nas leis do amor e do ódio. Por causa de uma
mísera terça-feira gorda, ruía por terra toda uma pirâmide
de afinidades laboriosamente acumuladas. No dia seguinte,
separaram-se para sempre. (Nelson Rodrigues, O reacionário – memórias e confissões. Adaptado)

A frase do narrador em que ele emprega linguagem figurada para se referir aos relacionamentos é:

Voltar à pagina de tópicos Próxima

Fonte: TéCNICO LEGISLATIVO / Câmara de São José dos Campos/SP / 2018 / VUNESP