A madrasta retalhava um tomate em fatias, assim finas, capaz de envenenara todos. Era possível entrevero arroz branco do outro lado do tomate, tamanha a sua transparência. Com a saudade evaporando pelos olhos,eu insistia em justificar a economia que administrava seus gestos. Afiando a faca no cimento frio da pia, ela cortava o tomate vermelho, sanguíneo, maduro, como se degolasse cada um de nós. Seis. O pai, amparado pela prateleira da cozinha, com o suor desinfetando o ar, tamanho o cheiro do álcool, reparava na fome dos filhos. Enxergava o manejo da faca desafiando o tomate e, por certo, nos pensava devorados pelo vento ou tempestade, segundo decretava a nova mulher. Todos os dias - cotidianamente - havia tomate para o almoço.Eles germinavam em todas as estações. Jabuticaba,manga, laranja, floresciam cada uma em seu tempo.Tomate, não. Ele frutificava, continuamente, sem demandar adubo além do ciúme. Eu desconhecia se era mais importante o tomate ou o ritual de cortá-lo. As fatias delgadas escreviam um ódio e só aqueles que se sentem intrusos ao amor podem tragar.
QUEIRÓS, B. C. Vermelho amargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2011.
Ao recuperar a memória da infância, o narrador destaca a importância do tomate nos almoços da família e a ação da madrasta ao prepará-lo. A insistência nessa imagem é um procedimento estético que evidencia a