Simulado Advocacia Geral da União - AGU | Administrador | 2019 pre-edital | Questão 280

Língua Portuguesa / Reconhecimento de tipos e gêneros textuais


Um motivo para chorar
(Olden Hugo.) Era um café da manhã, por volta das sete, a mim fato corriqueiro, na padaria da rua Maricá. Um homem estava já à
mesa menor, só, com pães intactos e apenas o café sendo bebericado, sem aparentar gosto nesse ato. Permaneceu assim
por grupos de minutos. Seus olhos focavam, através do vidro, o nada da movimentação expedita de automóveis,
bicicletas, cães e pessoas. Houve uma lágrima.
Engoli com esforço quando notei o choro emudecido daquele homem. Sua expressão se inalterou no rosto. Era fato
bastante enigmático. Não tive reação precisa. Mais lágrimas vieram. Meu café demorou mais que o costumeiro. Pensei
em oferecer-lhe um lenço, em perguntar se precisava de algo. Nada disso fiz.
Vieram a meu coração tantas razões quantas possíveis capazes de levá-lo a emoção extrema.
Era sem dúvida a perda de alguém para a morte inexorável, irreversível. É o motivo mais justo para chorar, o mais
comum. Certamente ele amava essa pessoa com um amor que vem naturalmente, com os sentimentos que são latentes
nos genes e que se despertam na convivência familiar. Era um amor de grilhões sanguíneos: seu pai, sua mãe, um irmão
ou irmã. As lágrimas resultavam, por conseguinte, de lembranças inumeráveis de momentos em presença a qual jamais
voltará a se efetivar. Jamais.
Mas me houve dúvida. Julgando melhor, vi que o choro era solitário mesmo por solidão. Sua mulher não o
acompanhava, não mais. E seria assim adiante. Era um choro de fim, definitivo. Era o fim do amor, que nunca acaba. Ele
devia amá-la por motivos inquebráveis, não por sangue, mas por vida compartilhada, o que pode ser mais rijo.
Lembrava-se, é pouco improvável, de trocas de solicitudes ao longo da vivência de um mundo restrito a ambos.
Recordava-se, e isso provocava o choro, do amor que cresceu por serem uma vida em dois corpos que venceram guerras
e festejaram glórias, solitários em sua união.
Não era, entretanto, ainda acertado isso. Um amigo apartado, a perda de um emprego de relações vetustas são
igualmente legítimas causas de pranto. E por alegria também se chora.
Outras lágrimas ganharam a superfície da mesa, passando antes por sua mão que tapava a boca, talvez contendo
palavras que viviam por si. Ele suspirava fundo.
Havia mais possibilidades. Era então a distância do filho cuja voz diariamente lhe soprava suave os ouvidos, numa
ficção tão verossímil que lhe arrancava de dentro o choro evitável por ser doloroso. A lembrança era da personalidade
tão autônoma do menino, que mal sabia falar, mas que agia intrépido e seguro sempre. A lembrança era do cheiro, da
textura da pele, dos abraços e beijos de amor real. Lembrava-se dos olhos nos seus olhos, como se nada mais houvesse a
ver no universo. E não havia de melhor. Nisso vinha o choro.
Uma lágrima me desceu junto. Não consegui terminar o café. Ele se levantou e se encaminhou ao caixa. Eu o segui
com os olhos, bem úmidos. Quis dar nele um abraço demorado e dizer-lhe que tudo ficaria bem. Quis dizer a ele, com
doçura, que era passageiro. Era minha vontade oferecer-lhe um conforto. Ia chamá-lo, mas minha garganta se embargou
e chorei mais. Ele saiu pela porta sem que eu sequer pudesse apertar a sua mão. (Disponível em: https://www.facebook.com/oldenhugo.silvafarias/posts/1583838504972154.)

Considerando suas características textuais e semânticas, qual a principal finalidade do texto?

Voltar à pagina de tópicos Próxima

Fonte: TéCNICO DE INFORMáTICA / CRF/SP / 2018 / IDECAN