Simulado Secretaria de Portos - SEP/PR | Analista Técnico Administrativo | 2019 pre-edital | Questão 288

Língua Portuguesa / Reconhecimento de tipos e gêneros textuais


Com alguma surpresa de quem me escuta, desde há al-
gum tempo venho a dizer que cada vez me interessa menos
falar de literatura. Pode parecer isto uma provocação, a atitude
do escritor que, para se tornar mais interessante, lança declara-
ções inesperadas e gratuitas. E não é assim. A verdade é que
duvido mesmo que se possa falar de literatura como duvido,
com mais razões, que se possa falar de pintura ou que se possa
falar de música. É claro que se pode falar de tudo, como se fala
dos sentimentos e emoções, seria absurdo pretender reduzir ao
silêncio aqueles que escrevem, ou aqueles que leem, ou aque-
les que sentem, ou aqueles que compõem música ou que pin-
tam ou que esculpem, como se a obra em si mesma já
contivesse tudo quanto é possível dizer e que tudo o que vem
depois não fosse mais do que interminável glosa. Não é isso.
Acontece, no entanto, que por vezes experimento o desejo de
limitar-me a uma muda contemplação diante de uma obra
acabada, pela consciência que tenho de que, de certa maneira,
nos domínios da arte e da literatura estamos lidando com aquilo
a que damos o nome de inefável. [...]
Quero dizer, não obstante, que antes de começar a
escrever sustentava como uma evidência palmária (por outro
lado nada original) que somos herdeiros de um tempo, de uma
cultura e que, para usar um símile que algumas vezes empre-
guei, vejo a humanidade como se fosse o mar. Imaginemos por
um momento que estamos numa praia: o mar está ali, e conti-
nuamente aproxima-se em ondas sucessivas que chegam à
costa. Pois bem, essas ondas, que avançam e não poderiam
mover-se sem o mar que está por detrás delas, trazem uma
pequena franja de espuma que avança em direção à praia onde
vão acabar. Penso, continuando a usar esta metáfora marítima,
que somos nós a espuma que é transportada nessa onda, essa
onda é impelida pelo mar que é o tempo, todo o tempo que ficou
atrás, todo o tempo vivido que nos leva e nos empurra.
Convertidos numa apoteose de luz e de cor entre o espaço e o
mar, somos, os seres humanos, essa espuma branca brilhante,
cintilante, que tem uma breve vida, que despede um breve
fulgor, gerações e gerações que se vão sucedendo umas às
outras transportadas pelo mar que é o tempo. E a história, onde
fica? Sem dúvida a história preocupa-me, embora seja mais
certo dizer que o que realmente me preocupa é o Passado, e
sobretudo o destino da onda que se quebra na praia, a huma-
nidade empurrada pelo tempo e que ao tempo sempre regressa,
levando consigo, no refluxo, uma partitura, um quadro, um livro
ou uma revolução. Por isso prefiro falar mais de vida do que de
literatura, sem esquecer que a literatura está na vida e que
sempre teremos perante nós a ambição de fazer da literatura
vida. (SARAMAGO, José. Da estátua à pedra. Belém: ed. ufpa; Lis-
boa: Fundação José Saramago, 2013. p. 25-27)

A verdade é que duvido mesmo que se possa falar de literatura como duvido, com mais razões, que se possa falar de pintura ou que se possa falar de música.

É claro que se pode falar de tudo, como se fala dos sentimentos e emoções...

A insistência no emprego do verbo falar, nas afirmativas acima, demonstra

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Fonte: TéCNICO JUDICIáRIO - ÁREA ADMINISTRATIVA / TRT 15ª / 2013 / FCC